Que tal dar uma lidinha no prólogo do lindíssimo NUNCA OLHE PARA DENTRO, da nossa diva Amanda Ágatha Costa?
PRÓLOGO
A música é delicada e embala a nossa noite de sábado em família. Papai e mamãe garantem que o jazz é a moda da década passada, e que por isso nós temos que ouvi-lo, afinal, parece que ninguém mais escuta esse tipo de canção. Não entendo o que é este jazz, nem porque meus pais pensam que devemos escutar tantos barulhos sem sentido, mas se eles dizem que é assim, devem saber do que estão falando.
Já pra mim a música não faz tanta diferença. Eu viveria em silêncio e não reclamaria nem mesmo uma só vez, o que não posso dizer sobre a pintura. Um mundo sem paletas, pincéis e telas para despejar todas as cores contidas nos meus pensamentos não seria um lugar onde eu gostaria de viver.
Alguns pensam através de situações, eu penso através de cores.
Cada emoção representa uma cor na minha mente. Automaticamente, filtro o humor e os comportamentos de uma pessoa, transformando-a em diferentes tons. Agora nós somos todos azuis.
A noite de hoje foi um grande marco na minha carreira como pintora. Estamos voltando da primeira exposição na qual dois dos meus melhores quadros estiveram em destaque. “A menina prodígio de Ostala”, é o que dizia o enunciado em letras garrafais logo acima do grande mural, contendo uma foto em que estou sorrindo tanto que poderia ser considerada laranja naquele momento. Eu queria ser laranja para sempre, se isso significasse poder sorrir para centenas de pessoas através das minhas pinturas. Repetidas vezes. Imortalizada através de uma infinidade de pinceladas e significados.
Papai está tão orgulhoso por tudo o que viu no evento, que cantarola alegremente até metade do caminho, assoviando sem parar. Assim que a canção chega ao fim, o aparelho de som dá início a uma outra que parece tão igual àquela de antes. Ele olha para minha mãe e sorri. Percebo que agora eles são vermelhos.
Eles começam a falar algo sobre perdão e do quanto fizeram tudo por amor, mas não estou muito focada no que dizem, porque quero lembrar das luzes em cima de mim e das pessoas me cumprimentando por causa da minha arte. Hoje eu só quero pensar que aquele museu estava todo voltado a homenagear um talento que poucos reconheciam até algumas horas atrás.
Então meu pai pausa a música e olha ligeiramente para trás, apenas para dizer as seguintes palavras:
— Amarelinha, hoje é seu dia de escolher o sabor da pizza! Você merece todos os sabores que existem no planeta, por isso pode escolher o que quiser. Nem que o atendente tenha que colocar meio sabor em cada fatia de um centímetro.
Minha mãe dá uma gargalhada doce, tão suave e ao mesmo tempo cheia de energia. Também começo a rir, mas não sem antes erguer os braços e comemorar.
— Oba! Pizza de todos os sabores! Posso pedir calabresa com morango e peixe com chocolate?
Ele ergue os dedos de uma mão para cima, e vejo que pelo espelho ele franze a testa, porém não me contraria ou diz que isso seria loucura, muito pelo contrário. Meu pai me incentiva.
— Olhe só, você pode ter o que quiser e o mundo estará lá esperando por você, amarelinha. Se achar que o sabor de calabresa com morango e peixe com chocolate tem sentido, ninguém tem o direito de dizer que não é certo. O que faz sentido para você é a única coisa que importa.
Mamãe cutuca o braço do marido, e se vira para me olhar antes que ele fale mais alguma coisa.
— Não escute nada disso, Betina. É o orgulho bobo que está fazendo ele concordar com mais uma das suas ideias malucas. Depois que você tiver uma intoxicação alimentar, quem passará as noites em claro serei eu.
Ela pisca o olho e se não estivéssemos dentro de um carro, no meio de uma pista escura e ainda distante de casa, com certeza ela receberia uma sessão de cócegas.
— Ei, amarelinha, ela está blefando. — Papai olha mais uma vez para trás, sustentando o meu olhar. — Você pode ter o mundo e os sabores de pizzas que quiser.
Sorrio com a forma engraçada e gentil que eles têm de contrariar um ao outro, mas meu sorriso é congelado assim que viro o rosto, ao mesmo tempo em que ouço o grito estourando dos lábios de minha mãe.
— Cuidado, Antônio!
A luz alta de um farol vem em nossa direção, e instintivamente meu pai gira o volante inteiro para o lado, o suficiente para fazer o veículo perder o controle e sermos arremessados para o outro lado da pista. Caímos em direção a um lago extenso, sentindo o corpo chacoalhar enquanto o carro capota algumas vezes. O cinto me prende ao banco, mas minha consciência não se apaga com a pancada, o que me faz ficar ainda mais assustada. Meu coração salta dentro do peito, e começo a gritar, por mais que nenhum som pareça estar saindo da minha boca.
Logo o carro começa a afundar, e a primeira coisa que consigo fazer é me soltar do cinto para tentar acordar os meus pais e fugirmos daqui. A água parece mais densa do que deveria ser e logo me puxa para baixo junto com ela, fazendo com que tudo em mim arda mais do que o normal. Meus pulmões exigem ar e quanto mais me debato, menos oxigênio eu tenho. Tento abrir a porta do passageiro, só que minha força parece tão escassa que nem consigo assimilar os meus movimentos e o que estou fazendo ao certo.
Em uma fração de segundos, o que antes mais se parecia com as cores do arco-íris, agora tem apenas tom de desespero. Forço meus olhos a ficarem abertos, porém é em vão. Meu mundo colorido desaba e em um estalo fica totalmente preto.
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